Villa-Lobos

Oito compositores fundamentais da história do violão brasileiro (Parte I)

Um guia para conhecer vida e obra de grandes ícones do instrumento.

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O violão é o símbolo da música brasileira, embora muito conhecido como instrumento de acompanhamento, o violão solo possui um repertório próprio e muito original, fruto da influência da música erudita e da música popular.

A história do violão brasileiro começa com a modinha, um gênero musical de canção sentimental de origem luso-brasileira. O primeiro violonista ou talvez o primeiro violeiro conhecido foi Domingos Caldas Barbosa. Domingos nasceu no Rio de Janeiro em 1740 e se mudou para Coimbra aos 23 anos de idade para estudar Direito. Posteriormente se estabeleceu em Lisboa, onde chegou a ser um dos mais renomados músicos de modinha, sempre acompanhado por sua viola com cordas de arame. Aos poucos, a modinha tipicamente brasileira, passaria por transformações e ganharia ares da música erudita nas cortes portuguesas.

No século XIX, a modinha se fundiu com outros gêneros musicais, principalmente com a dança de salão Européia, como a valsa e a polca. Também houve uma fusão com os ritmos negros de origem africana como o lundu. Essa mistura de influências deu origem ao choro, uma música mestiça.

O choro pode ser considerado o primeiro grande gênero brasileiro, nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro e foi através dele que se consolidou a presença do violão na música popular. A partir de então, criou-se uma escola de violão no Brasil com grandes compositores e intérpretes.

Diz Marco Pereira (violonista, compositor e arranjador):

“Defendo há muito tempo a tese de que temos uma grande escola de violão no Brasil. Até hoje você tem violonistas da nova geração fazendo coisas incríveis por aí…”

Como o guia foi organizado

Selecionar apenas oito compositores de um instrumento ícone da música brasileira é uma tarefa não só difícil como injusta, pois deixa de fora nomes que também contribuíram para escrever a história do instrumento. Entre tantos músicos, violonistas como Hélio Delmiro, Egberto Gismonti, Sérgio Assad, Yamandu Costa, Paulo Bellinati e Luiz Bonfá.

Os nomes selecionados são compositores que de alguma forma se evidenciaram na escola do violão brasileiro. O guia está dividido em duas partes, na primeira parte estão os compositores João Pernambuco, Villa-Lobos, Radamés Gnattali e Dilermando Reis. A segunda parte inclui Aníbal Augusto Sardinha (Garoto), João Gilberto, Baden Powell e Guinga.

Dois critérios:

  1. Compositores - Apesar de o Brasil ter grandes instrumentistas e intérpretes, como Raphael Rabello e violonistas eruditos, a relação contempla apenas compositores.
  2. Violão solo - Com exceção de João Gilberto (que não compôs nenhuma peça para violão solo mas revolucionou a forma de tocar o instrumento), o guia é voltado apenas para compositores de violão solo.

Os intérpretes também estão representados através de uma Playlist criada no Spotify, em que é possível conhecer melhor a obra de cada compositor interpretada por um grande violonista.

1. João Pernambuco

João Teixeira Guimarães (1883 - 1947) aprendeu a tocar violão com “cantadores” sertanejos, foi um dos primeiros músicos nordestinos a se estabelecer no Rio de Janeiro, onde arrumou um emprego na fundição. Em terras cariocas, organizou alguns conjuntos regionais de baião, música típica nordestina.

Contudo, começou a ficar conhecido pela participação em um grupo que tem hoje grande importância na história da música popular brasileira “Os 8 Batutas”, entre seus integrantes, o grupo tinha Donga, China e ninguém menos que o maior compositor de choro de todos os tempos na flauta, Pixinguinha. Posteriormente, o grupo excursionou pela França nos anos 20 com grande sucesso, uma excursão que durou 6 meses.

João Pernambuco era uma figura extraordinária, muito sisuda mas muito cordial, quase todos os músicos no começo do século do Rio de Janeiro devem de alguma forma a João Pernambuco, ora por favores financeiros, ora por sua generosidade artística.

Compôs várias peças para violão solo. As mais conhecidas são “Graúna” (em que é possível notar, no andamento da música, a reprodução no violão do canto do pássaro chamado Graúna) e “Sons de Carrilhões”, música que ficou eternizada no repertório violonístico brasileiro e mundial. Villa-Lobos, que se interessou pelo folclore brasileiro e particularmente pelo choro, era amigo e grande apreciador da música de João Pernambuco, chegou a dizer:

“…Bach não se envergonharia em assinar os estudos de João Pernambuco como sendo seus…”.

O que ouvir de João Pernambuco (Spotify):

. Sons de Carrilhões
. Graúna
. Interrogando

Retrato de João Pernambuco

2. Villa-Lobos

Villa-Lobos (1887 - 1959) dispensa apresentações, é considerado o maior compositor brasileiro de todos os tempos, o grande nome do violão erudito nacional. Sua vida e obra são conhecidas através não só da música, mas de vasto material já lançado, biografias, filmes e homenagens prestadas ao maestro.

Compôs mais de 20 peças para violão: um concerto para violão e orquestra, 5 Prelúdios, 12 Estudos, um Choro e 5 Peças da Suíte Popular Brasileira. Sua obra violonística é uma referência no mundo inteiro. Um estudante de violão erudito, em qualquer lugar no mundo, deve estudar peças para alaúde do século XVII, compositores do século XIX e XX e tem que estudar Villa-Lobos, é obrigatório o estudo de peças para violão de Villa-Lobos.

Sua obra é motivo de orgulho para todos os brasileiros. Villa-Lobos conseguiu expressar na música erudita o espírito brasileiro através da influência da música popular, das rodas de choro que frequentava, e das danças de salão. Nos 5 Prelúdios para violão em que escreveu, fez homenagens a figuras típicas brasileiras:

O Prelúdio No.1 é uma homenagem ao homem do campo brasileiro, o segundo é uma homenagem ao malandro carioca, o terceiro é uma pequena Bachiana em homenagem a música de Bach. O quarto é uma homenagem ao índio brasileiro, e o último, a vida social carioca.

Os Doze Estudos são peças para violão revolucionárias, foram dedicadas a Andrés Segovia. Na época, o maestro declarou que os estudos representavam, na literatura violonística, o que são os Estudos para piano de Chopin.

Sem dúvida, Villa-Lobos influenciou uma geração de músicos e compositores brasileiros, entre eles, Tom Jobim, um dos principais expoentes da Bossa Nova, que disse:

“Villa-Lobos e Debussy são influências profundas na minha cabeça.”

O que ouvir de Villa-Lobos (Spotify):

. Prelúdio No. 5
. Estudo No. 1
. Schottish-Choro

Andrés Segovia com Villa-Lobos (a direita)

3. Radamés Gnattali

Radamés Gnattali (1906–1988) nasceu em Porto Alegre, filho de um imigrante italiano e uma pianista, seu nome é uma homenagem a ópera de Verdi, a quem seus pais eram fãs. Começou a ter aulas de piano com sua mãe aos 9 anos de idade, aos 14 anos, iniciou seu estudo formal no Conservatório de Porto Alegre, pretendia ser concertista.

Nessa época, Radamés começou a frequentar blocos de carnaval e grupos de seresteiros boêmios, na impossibilidade de tocar piano nesses ambientes, acabou aprendendo cavaquinho. Em 1924, em uma viagem ao Rio de Janeiro onde iria se apresentar para executar um concerto de Tchaikovsky, conhece Ernesto Nazareth.

No início dos anos 30, muda-se definitivamente para o Rio de Janeiro onde continua a sua carreira com a música erudita. Diante de dificuldades financeiras, passou a se dedicar também a música popular e fazia arranjos para programas de rádio onde as orquestras acompanhavam grandes cantores da época. Radamés, além de ser um grande compositor erudito, se tornou um dos maiores arranjadores da música popular brasileira.

Vários compositores da música erudita brasileira se dedicaram a escrever para violão, principalmente a partir do movimento modernista da música brasileira onde o instrumento representou uma tendência ao nacionalismo. Escreveu peças para violão solo, incluindo dez estudos e concertos.

Foi responsável por revelar vários violonistas no decorrer da vida, destacando Raphael Rabello, revelado nos anos 70 no conjunto de choro formado por Radamés, o “Camerata Carioca”. A parceria com Raphael (prodígio no violão) renderia grandes frutos, como o álbum de 1985, em que faz um tributo a obra de “Garoto”, e no álbum de 1986 com as músicas compostas para violão solo, “Raphael Rabello Interpreta Radamés Gnattali”.

No programa da TV Cultura “Ensaio” (1993), Raphael diz sobre Radamés:

“Radá que botou essas minhocas na minha cabeça. Radamés que abriu as coisas para mim, que tirou as fronteiras…”

O que ouvir de Radamés (Spotify):

. Estudo No. 1
. Toccata em Ritmo de Samba No. 2
. Brasiliana No. 13

Radamés Gnattali (a esquerda) com Raphael Rabello

4. Dilermando Reis

Dilermando Reis (1916 - 1977) nasceu em Guaratinguetá, São Paulo. Começou a estudar violão com seu pai, Francisco Reis, posteriormente teve aulas com o violonista Levino da Conceição, que o levou em 1933 para o Rio de Janeiro .

Depois de trabalhar como professor de violão na loja “Ao Bandolim de Ouro” (naquele tempo as lojas de instrumentos musicais mantinham professores de música), começou a acompanhar calouros na Rádio Guanabara. Quando o radialista Renato Murce o ouviu tocando a valsa “Gota de Lágrima” durante o intervalo, gostou tanto que deu um programa especial de violão para Dilermando Reis. O programa fez grande sucesso.

Dilermando representa um novo momento do violão, o surgimento do rádio e da indústria fonográfica brasileira. Foi um dos grandes violonistas do rádio e um dos primeiros a ter uma orquestra composta por 10 violões, talvez a primeira do mundo.

É conhecido por sua amizade com o então presidente Juscelino Kubitschek, foi professor de violão de sua filha, Maristela Kubitscheck.

Teve uma carreira muito longa, gravou mais de 40 LPs. Eternizou peças como “Abismo de Rosas” e “Marcha dos Marinheiros” de Américo Jacomino, o Canhoto. Curiosamente não era bem visto pela elite do choro carioca, talvez pela sua formação como seresteiro que o impedia de certo modo de ter a flexibilidade e o improviso nas rodas de choro. Como compositor, porém, escreveu choros para violão que são hoje muito conhecidos e interpretados por outros violonistas, músicas como “Tempo de Criança” (tocada por Yamandu Costa no Prêmio Sharp de 2002) e “Magoado”.

Também é autor de valsas que se tornaram clássicos do violão brasileiro, como “Noite de Lua”, “Se Ela Perguntar”, “Uma Valsa e Dois Amores”, todas foram interpretadas por Raphael Rabello no álbum de 1994 “Relendo Dilermando Reis”, uma homenagem a talvez o mais conhecido violonista solo brasileiro.

Luis Nassif, jornalista e estudioso da história do violão brasileiro, escreveu a contracapa do álbum. Sobre Dilermando Reis chegou a escrever:

“Não há brasileiro vivo ou morto que não se comova com suas músicas.”

O que ouvir de Dilermando Reis (Spotify):

. Tempo de Criança
. Noite de Lua
. Se Ela Perguntar

Dilermando Reis no meio de jornalistas em 1972

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